LA CAPELLE > Padre Leão Dehon
A FAMÍLIA DEHON
Leão Gustavo Dehon nasce em La Capelle a 14 de março de 1843, festa de Santa Matilde, rainha da Alemanha. É o filho mais novo de Júlio Alexandre Dehon e de Adélia Estefânia Belzamine Vandelet.
O PAI
A relação de Leão Dehon com o seu pai, Júlio Alexandre Dehon, para além de uma profunda e terna veneração, é também marcada por frequentes conflitos e faltas de compreensão mútuos. Há que entender, no entanto, os motivos que estão na origem da descrença do pai.
“O meu pai não teve a felicidade de receber uma educação cristã completa. Da educação familiar herdou o sentido da equidade e da bondade que o caracterizaram ao longo de toda a sua vida. Abandonou a prática da vida cristã nos tempos do colégio, mas manteve sempre o respeito e a estima pela religião” (NHV I/4v).
Júlio Dehon pertence àquela geração de franceses que foi descristianizada pelo ensino público. No período da sua permanência no colégio, os jovens eram educados num ateísmo ou pelo menos na indiferença à religião. Cerca de 25 anos mais tarde, o seu filho cresce na escola católica. Conflitos e incompreensões são previsíveis. Por outro lado, Júlio Dehon considera a carreira do seu filho como uma questão de honra para família. Refere numa carta ao diretor do Seminário Santa Clara, em Roma:
“Gostaria que Leão recebesse as ordens maiores o mais tarde possível e só depois de uma decisão tomada em família” (carta de 22 de março de 1867 ao Pe. Freyd).
Toda a orientação vocacional de Leão Dehon é fonte de disputas. A decisão do filho pelo sacerdócio, o aparecer de batina em La Capelle, o convite à prática sacramental são situações que tocam as convicções pessoais do pai como também a sua reputação diante da sociedade civil de La Capelle.
A resistência do pai, porém, fez amadurecer a decisão do filho. Os estudos e as viagens, fundamentais para o desenvolvimento pessoal de Leão Dehon, estavam sempre por conta do pai, um facto que Dehon muito reconhece. Sabemos, por outros testemunhos, que Júlio Dehon teve uma atitude habitualmente muito afetuosa para com o filho.
A MÃE
Estefânia Adélia Belzamine Vandelet, nasceu a 1 de dezembro de 1812. Contrariamente ao marido, distinguiu-se por uma educação escolar que dava grande importância a uma religiosidade pessoal e mesmo operosa. No colégio das “Damas da Providência” de Charleville, nas Ardenas, o manual de oração do colégio – “Manuel du Sacré-Coeur” – era a acompanharia das formandas. Cedo viria a comunicá-lo ao filho.
Estefânia Vandelet teve três filhos, mas um deles, o pequeno Leão, faleceu com quatro anos de idade, meses antes do nascimento de Leão Gustavo Dehon. Nas suas memórias, Dehon escreve que a mãe desatava em lágrimas sempre que se acenava ao menino que morreu. Quando Leão Gustavo Dehon, aos quatro anos, adoeceu gravemente, a mãe temeu perdê-lo. Uma vez restabelecido, o zelo materno cresceria ainda mais.
“A minha mãe foi para mim um dos maiores dons de Deus e o instrumento de mil graças. Que dignidade, que fé, que virtude, que coração ela tinha. Nosso Senhor amou-a muito, pois concedeu-lhe muitas graças” (NHV 1v).
É de sua mãe, e ao pé dela, que aprende a rezar. Com ela vai à igreja. É ela quem o introduz na devoção ao Coração de Jesus, na espiritualidade mariana – La Salette -, e na veneração a São José. Os Santos da infância da mãe – Luís de Gonzaga, Estanislau Kostka – acompanham a de Leão Dehon. É ele mesmo que descreve o género peculiar desse processo educativo:
“… Fazia [a mãe] passar algo da sua linda alma para a minha” (NHV I, 6v).
A única vez que Dehon teve uma profunda desilusão da mãe, foi no tocante a sua decisão vocacional. Dehon tem plena consciência da oposição do pai, por isso contava com a ajuda da mãe.
“Minha mãe, de quem tanto esperava que me ajudasse, abandonou-me de todo. Era piedosa e queria que também eu o fosse, mas o sacerdócio assustava-a. Pensava que deixaria de ser da família, que me perdia” (NHV IV, 101).
Nos últimos anos de vida, Estefânia Adélia Vandelet fica quase completamente paralítica. Pe. Cyrille Petit, um amigo de seminário de Dehon e pároco de Buironfosse, visita-a com regularidade em nome do amigo. Nas suas cartas, escreve que a mãe do Pe. Dehon se prepara para morrer.
“Cada visita que lhe faço, dá-me a impressão que Nosso Senhor aperfeiçoa essa bela alma e a purifica para o céu. Eis ainda quantas graças emanam do divino Coração!” ( NHV XIV, 148).
Estefânia Adélia Vandelet morre com 69 anos de idade, a 19 de março de 1883.
O IRMÃO
Henrique Luís Dehon (1839-1922), era o irmão mais velho de Leão Dehon. Os seus gostos enquadravam-se com os do pai: tanto no comércio da cerveja, como na preparação dos campos e na criação de cavalos.
Henrique e Laura Longuet, casados em 1864, tiveram duas filhas. A mais nova, Laura Amélia Henriqueta, nascida em 1868 e casada em 1889, morreu em 1896 sem deixar filhos. A primogénita, Marta Maria Luísa, nascida em 1865, casada a primeira vez com Desidério Malézieux e, a segunda, com o conde Roberto de Bourboulon, teve três filhos de sexo masculino. Morreu em 1951.
O relacionamento de Leão com o seu irmão Henrique era cordial, visitava-o em La Capelle, ficava em sua casa depois da morte dos pais.
Por quase trinta anos foi Presidente da Câmara de La Capelle e Conselheiro Geral de Aisne. Lutara sempre pela causa católica. Recordando a sua morte, ocorrida em fevereiro de 1922, Dehon escrevia no seu diário:
“Domingo, dia 19, meu irmão encontrava-se muito doente em Paris, junto dos filhos. Fui visitá-lo e assisti-o nos seus últimos momentos. Teve uma boa morte, muito cristã, rodeado dos seus. Foi preparado pelo Superior Geral dos Padres de Sião. Teve uma vida muito digna e muito caritativa. Fomos sempre muito unidos” (NQT XLIV/1922, 42).
A SOBRINHA
Marta Maria Luísa Dehon. Quando se leem as cartas que Dehon escreveu à sobrinha Marta (1865-1951) ou as que a ela se referem, descobre-se um Dehon primoroso, terno e cheio de humor nos últimos anos da infância de Marta, e igualmente, mais tarde, cheio de afeto e conforto, e sempre fiel nos anos difíceis da doença e da morte do seu marido André Malézieux, em 1893.
Quando Marta tinha apenas um ano, Dehon com 23 anos, escreve de Roma uma carta aos seus pais:
“Dai um abraço por mim à pequenina Marta e dizei-lhe que não coma açúcar, para ter depois uns lindos dentes, e não vir a sofrer o que às vezes acontece ao tio” (8 de dezembro de 1866).
Muitas vezes leva-lhe de Roma um presente e repetidamente pede aos pais que lhe deem um bombom em seu nome: “para que não esqueça o tio”. Vê-se que a simpatia da sobrinha lhe interessava mais que o estado dos dentes.
A mesma afeição, já com outro estilo e outro conteúdo, aparece nas cartas dos anos 90. Marta já tem dois filhos, Henrique e João, e em 1892, o marido adoece gravemente, falecendo no mês de junho de 1893. Nesse período, Leão Dehon escreve com frequência à sobrinha, para encorajá-la e orientá-la para os filhos e para a fé.
“Rezei muito por vocês em Lurdes. Continuo a pedir a Nossa Senhora que conceda saúde a André. Enviarei amanhã uma pequena imagem benzida de Nossa Senhora de Lurdes para que a traga sempre na algibeira. Sobretudo, nada de desânimos com as provas que nos vêm. As melhores consolações são as da religião. A distração e as festas fazem esquecer por alguns momentos o sofrimento, mas depois sentimo-lo mais e com maior força. A oração, as leituras pias, o abandono nas mãos da Providência são os únicos remédios eficazes” (30 de agosto de 1892).
Depois da morte do marido, Dehon tenta consolá-la, falando-lhe dos filhos, por vezes com humor:
“Penso muitas vezes nesses dois travessos. Um dia virão também eles visitar a Itália e instruir-se, vendo grandes memórias do passado. Roma tem interesse só para os espíritos que amadureceram no estudo. João gosta mais do lindo Guignoldas Tuileries [teatro de fantoches] que das grandes ruínas do Coliseu. Também imagino que prefira os monumentos fabricados pelos excelentes pasteleiros de Paris que os construídos pelos arquitetos de Roma. Um forte abraço a esses dois queridos miúdos e a todos a melhor amizade” (10 de março de 1894).
A CASA
Situada num ambiente rural, próspero à atividade agropecuária, a casa era propriedade da família Dehon. O pai, Júlio Dehon, era criador de cavalos. Pessoa de grande reputação, coube-lhe o encargo de presidente da freguesia, mais tarde assumido pelo seu filho Henrique Dehon. É neste meio que nasce, cresce e é educado Leão Gustavo Dehon, até à idade de 12 anos, altura em que, juntamente com o irmão, parte a 1 de outubro de 1885 para Hazebrouck, ingressando na quarta classe.
“Seja sempre bendito este dia, – escreve Dehon – nesse dia, recebi tantas graças que não posso recordá-las sem que me deixe comover cheio de gratidão…” (NHV 13v).
A vida e o currículo exigentes do colégio permitem que, só por breves períodos, esteja em casa da família. A regra da casa de Hazebrouck era
“viril (…) [de] muito trabalho… e poucas férias: não via a família senão na Páscoa e nas férias grandes” (NHV 13v).
O JARDIM
Apreciar a natureza é para Dehon uma experiência religiosa, como se vê claramente nos seus diários de viagem. Mas já o jardim, nas traseiras da casa, tem uma importância e um significado especiais para Dehon. Deste jardim, ainda criança, colhia flores e plantas para decorar a pequenina capela, onde brincava a rezar missa. Nas suas memórias escreve:
“Desde cedo habituei-me a dedicar um pouco do meu tempo à jardinagem; por isso, tive sempre o meu pequeno jardim” (NHV I, 6v).
Mais pormenorizada ainda é a descrição de 1869.
“Ia de manhã e de tarde à minha velha igreja e passava horas deliciosas no jardim a rezar o meu breviário e o meu terço e a fazer boas leituras. Por vezes, passeava pelos lugares da minha infância, à sombra das nogueiras, das acácias, das tuias e cerejeiras; outras vezes, sentava-me num banco rústico ou numa cadeira de ferro, junto de um velho e plangente freixo. Faziam-me companhia os tentilhões e os pintassilgos” (Verão de 1869, NHV VI, 165f).
A CASA ATUALMENTE
A 10 de outubro de 1997, a Congregação dos Sacerdotes do Coração de Jesus adquire a casa natal do Pe. Dehon, que a família, aliás, desejava vender prioritariamente à Congregação. Com a sua aquisição, o Governo-geral pretendia estabelecer aqui um centro de pesquisa, de estudo e de irradiação da espiritualidade dehoniana. Os primeiros membros da nova comunidade tomariam posse a 2 de dezembro de 1998, mas só a 14 de março de 1999 é que é oficialmente aberta a comunidade de La Capelle, na presença do Conselho Provincial, da comunidade de Saint-Quentin e de alguns religiosos de Paris. Em 2010, a comunidade assumiu o empenho pastoral da paróquia de La Capelle.
A PARÓQUIA
A ANTIGA IGREJA
Da igreja antiga refere o Pe. Dehon:
“A igreja a que me ligam as minhas primeiras lembranças não tinha nenhum atrativo para mim… Era quase um pardieiro, era triste e sem ornamentos…Minha mãe levava-me às funções do Domingo e às vezes à bênção eucarística da semana. Eu tinha cerca de sete anos quando o bispo de Garsignies veio administrar o crisma…” (NHV 6v)
A igreja dará lugar, mais tarde, a outro templo construído nos anos 1884-1888.
O BATISMO
A 24 de março de 1843, dez dias após o seu nascimento, Dehon é batizado na Igreja Paroquial de La Capelle pelo Pe. Prosper Hécart, pároco de La Capelle de 1839 a 1855.
“O 24 de março era a festa de um menino mártir, S. Simão. Mas era sobretudo as primeiras vésperas da festa da Anunciação. Alegrei-me, mais tarde, de unir a recordação do meu batismo com o Ecce Venio de nosso Senhor. Obtive muita confiança desta intuição. Nosso Senhor não ficará desagradado se vejo nesta coincidência uma atenção particular da providência, em ordem à minha vocação atual de sacerdote-hóstia do Coração de Jesus. Sempre tive um culto especial à memória do meu batismo” (NHV 1r).
Para a mãe, o nome de Leão estava associado à morte de um filho com o mesmo nome, falecido aos quatro anos de idade, pouco antes do nascimento de Dehon. Contudo, o nome de Leão fazia também referência ao Pontífice da infância da mãe (NHV 2v), Leão XII. O nome Gustavo provinha do padrinho e tio, Eduardo Gustavo Dehon, o irmão do pai de Dehon. Recordando o seu batismo fala dos santos a que se referem os seus nomes: Leão Magno e Agostinho, pois parece que Gustavo seja uma derivação de Agostinho.
“Espero que um dia me acolham como amigo, pois tantas vezes lhes dei prova da minha amizade e confiança. Em Leão Magno estimava sobretudo a sua grande doutrina teológica, o seu estilo esplêndido, a sua doçura, a sua dignidade; e em Agostinho admirava a sua penitência e as suas lágrimas, das quais quisera apropriar-me, o seu grande coração e o amor ardente por Nosso Senhor” (NHV 2v).
A PRIMEIRA COMUNHÃO
Leão Dehon recebe a comunhão pela primeira vez a 4 de junho de 1854.
“Segui durante três anos o catecismo da paróquia… (…) Esse belo dia não deixa nenhuma sombra na minha lembrança. Eu tinha boa vontade, fiz o que pude. A minha boa Mãe ajudou-me… Compreendi que se tratava dum grande ato. Preparei-me bem e recebi fortes sensações de graça. As cerimónias de renovação das promessas do batismo e da consagração à Santíssima Virgem estão ainda presentes na minha imaginação. Eu mesmo recitei a renovação das promessas do batismo… Estava sob uma fortíssima sensação de graça” (NHV 9v).
A IGREJA ATUAL
A igreja está dedicada a Sainte Grimonie, patrona de La Capelle. O seu estilo eclético, misturando românico italiano e mourisco, é obra do mesmo mestre e arquiteto da Ópera de Paris, Charles Garnier.
A GUERRA FRANCO-PRUSSIANA
Quando o Dehon estudava em Roma e trabalhava como estenógrafo no Concílio Vaticano I, a França declarava guerra à Alemanha. O Concílio era interrompido e, em 1870, Dehon regressava a La Capelle. Como sacerdote, vinha poupado ao serviço do exército, mas devia permanecer com a família. Desse período refere:
“A guerra durará seis meses. Passou como um longo pesadelo, cheio de angústias e de sofrimentos… os homens armados passavam tão desordenadamente que nem se pode imaginar… com as suas roupas rasgadas… levavam e semeavam sobre os seus caminhos desânimo e desespero”…
No mês de novembro, um regimento da Armada do Norte estabeleceu-se em La Capelle. Pe. Dehon coloca-se à disposição dos militares:
“Todas as tardes fazemos uma reunião religiosa na igreja. Os jovens soldados nunca faltavam. Sabiam que iam enfrentar a morte alguns dias depois. Rezavam todas as tardes, a maioria confessava-se e aproximava-se da santa comunhão…”.
A VOCAÇÃO
FLANDRES
Leão Dehon passa os anos de 1855 a 1859 sobretudo em Hazebrouck, na Flandres francesa. Embora admita não conhecer a fundo a região, Dehon respira dos seus colegas e professores, das férias e viagens pela região um ar católico. A imagem que traça da Flandres é rica em observações:
“Não conheci em profundidade os costumes desta região da Flandres, onde passei quatro anos, todavia conservo dela lembranças preciosas. Eram populações sinceramente cristãs. As famílias eram numerosas, bons os costumes, e a prática da fé era quase universal. A paróquia era ativa, a igreja asseada e os movimentos numerosos. Estimava-se o trabalho, e a agricultura era bastante desenvolvida e próspera. O operário das cidades trabalha na indústria têxtil. Havia pouca miséria, embora fossem muitas as crianças. O povo só falava flamengo, o que o preservava das más leituras. Havia um clero numeroso, ativo, dedicado e que desfrutava de grande autoridade” (NHV I, 27r).
O clero flamengo impressiona-o positivamente:
“este clero do Norte” é “cheio de fé” e “ama as almas” (NHV I, 13v).
A partir de 1830, o número de padres aumenta significativamente na Flandres. É um clero que provém maioritariamente do meio rural e que
“tinha como modelo o ideal romântico do bom padre, que dedica a sua vida ao serviço dos mais fracos” (Cholvy).
Na evolução da sua personalidade, são estas primeiras imagens a causar-lhe o maior impacto: uma sociedade confessamente cristã e um clero piedoso, comprometido com a vida da Igreja.
O DIRETOR
O Pe. Pierre-Jacques Dehaene, nascido a 16 de setembro de 1809 em Wormhoudt, perto de Dunkerque, e ordenado sacerdote em 1834, foi diretor do colégio municipal de Hazebrouck em 1838. Fundou o colégio eclesiástico de São Francisco em 1865. Morreu a 15 de julho de 1882.
Leão Dehon descreve assim Dehaene nas suas memórias:
“Este homem de Deus exerceu no Norte um grande apostolado. Era uma natureza de elite. Ardente como um homem do Sul, correto e digno como um homem do Norte. O Colégio não bastava para o seu zelo: evangelizava a Flandres. Dava-se à pregação, com uma verdadeira eloquência, em flamengo e em francês. No colégio, era ele quem nos fazia a leitura espiritual quotidiana, o catecismo aos domingos, os sermões e as confissões. Ensinava filosofia, presidia aos conselhos e orientava a assembleia. Conseguia ser ao mesmo tempo extremamente bom e reservado. Tive a sorte de ser, durante quatro anos, um seu penitente” (NHV I, 14r f.).
“Parece-me que obteve de Deus a graça de fazer passar para a minha alma algo da sua” (NHV I, 16v).
As palavras de Dehon testemunham o apreço que tinha pelo seu Diretor. Elementos do perfil de um Colégio e de um Diretor ‘à Dehaene’ estarão presentes, anos mais tarde, na Instituição São João, em particular o que Dehaene exigia dos professores:
“um bom professor deve dedicar aos alunos o seu tempo, as suas forças, a sua inteligência e o seu coração, … sobretudo o seu coração, para cobrir de amor e compaixão todas as fraquezas da jovem idade, a exemplo do único Mestre perfeito” (Lemire, L’abbé Dehaene, 99).
O passeio anual do colégio, no dia da festa do Diretor; o encerramento do ano letivo, de forte cunho publicitário e de que fazia parte o discurso do Diretor; o desejo de fundar uma comunidade sacerdotal; a formação ao zelo apostólico; a sua particular visão pedagógica, que abrange o corpo, a inteligência e o espírito; numa palavra, Hazebrouck, com a personalidade dominante de Dehaene, sob muitos aspetos influencia e prepara Leão Dehon para a sua futura missão.
O CONFLITO
A famosa fotografia de Leão Dehon jovem é assim por ele descrita:
“Tinha 16 anos. Conservo uma minha fotografia, tirada nessa altura, em Hazebrouck” (NHV I, 30v).
Superados os exames de bacharel em Letras, em Douai, a 16 de agosto de 1859, Leão Dehon deixa Hazebrouck.
“Estava para deixar aquela terra de fé. Levava comigo os tesouros mais preciosos, o gosto e o hábito da oração, o zelo pela ação, uma fé bastante esclarecida, amizades fiéis, recordações muito gratas, um suficiente conhecimento da minha vocação” (NHV I, 30v).
Olhando para o rosto do jovem Dehon, é difícil imaginar que precisamente nesse tempo comece um conflito com os pais: um conflito duro, longo e cheio de consequências para os três. O filho atreve-se a opor o seu desejo de ser padre aos sonhos do pai por uma carreira civil, toda feita de prosperidade, nome e sucesso:
“Passados uns dias de férias, revelei a meu pai e a minha mãe a minha vocação. Se bem que já devessem suspeitá-lo, foi como um raio…A conclusão foi arremessar bem para longe o meu projeto. Pedi-lhe para me matricular no São Sulpício. A resposta foi que nunca mo permitiria. Foi decidido que me prepararia para o Politécnico”(NHV I, 31r).
Os resultados deste longo conflito comporão a caminhada e a personalidade de Dehon como conhecemos hoje: os seus estudos em Paris, a sua formação cultural, as suas grandes viagens e até os seus estudos em Roma. Tudo contribuiu para formar a sua experiência. Os resultados não seriam certamente os mesmos se o pai, em 1859, tivesse dito um “sim” imediato.
Yves Ledure oferece esta leitura para “o conflito”:
“O filho terá portanto de se opor ao pai para realizar o seu projeto, para se realizar com esse projeto. O projeto dehoniano, cuja complexidade descobriremos aos poucos, começa com uma desobediência inicial aos pais. A recusa de seguir o pai abre o caminho à obediência a Deus, que constituirá a atitude fundamental da espiritualidade dehoniana” (Yves Ledure, Petite Vie de Léon Dehon, p. 26).
O COLÉGIO
Sempre que Dehon recorda o período de Hazebrouck, fá-lo com muita gratidão:
“Foi a graça que me guiou na vida. Por ela louvarei a Deus toda a minha vida” (NHV I, 12v).
Pouco antes de morrer, em 1925, evoca, com o título “Os grupos que me edificaram”, também:
“grupo de Hazebrouck: o Padre Dehaene, meu superior e diretor [espiritual]; o Padre Boute, o melhor dos professores; alguns colegas: Vasseur, Laenhou, Dassonville, Van de Walle…; os três primeiros tornaram-se padres. A Providência conduziu-me a essa região de fé, para aí encontrar a vocação” (NQT XLV/1925, 33f).
O início de Hazebrouck foi turbulento. Em La Capelle, nem os pais nem os professores conseguem dominar-lhe o temperamento. Impunha-se uma mudança de escola.
“Começava para mim a idade difícil. Era muito entregue a mim mesmo. O ano foi mau. Era preguiçoso… Minha mãe sofria, vendo-me nesse caminho. Meu pai também tinha pena. Dissimulava os meus defeitos o mais que podia. Dominava-me uma grande curiosidade de conhecer o mal. Sentia-me atraído para a dança e para os ajuntamentos mundanos… Deixei de abrir-me a minha mãe e frequentemente era repreendido pela família” (NHV I, 10r).
Os pais mantêm contactos com um dos professores, o Pe. Boute, que foi pároco de uma das criadas dos Dehon. A decisão de enviar o jovem Dehon e o seu irmão Henrique para o colégio de Hazebrouck começou com estas mediações.
O Diretor Dehaene apresenta, num opúsculo, o programa do colégio:
“trabalhamos na educação dos jovens, utilizando todas as práticas que sirvam para desenvolver as faculdades da alma e as faculdades do corpo, sobretudo a religião, que é a alma e a luz das letras, das ciências e das artes, a fonte e o modelo de toda a entrega sincera e generosa. Uma assistência paterna acompanha o aluno, sempre e em toda a parte, para formá-lo ao gosto da ordem e do dever” (citado no Mayeur, Lemire, p.17).
A personalidade dos padres educadores, a amizade com alguns colegas, o espírito religioso do colégio, o compromisso nas diversas associações e o ambiente da Flandres católica fazem de Hazebrouck o lugar onde Dehon experimenta uma vivência da fé até então desconhecida e onde descobrirá a vocação para o sacerdócio, de que dirá mais tarde:
“O que é de admirar, é que a partir de então a minha decisão jamais foi seriamente abalada” (NHV I, 29r).
A VOCAÇÃO
Do período de 1855 a 1859 – tempo de Hazebrouck – não se possui nenhuma carta ou escrito de Leão Dehon. Desses anos apenas temos as suas memórias – Notes sur l’histoire de ma vie –, redigidas 30 anos depois. Aí, é descrito o trabalho da graça na sua vida. Dehon reconhece, com muita clareza, que a descoberta da sua vocação foi preparada por muitos fatores:
“Sinto-me confundido de gratidão, quando vejo como Nosso Senhor preparou e conservou maravilhosamente a minha vocação. Tinha-me colocado num ambiente propício para fazê-la nascer” (NHV I, 28v).
“O primeiro chamamento divino é claro. Já no primeiro ano pensava no sacerdócio. A decisão tomei-a aquando do segundo retiro. Foi confirmada na noite de Natal” (NHV I, 28v).
Sobre essa celebração da meia-noite no convento dos Capuchinhos escreve ainda:
“como menino do coro [acólito], participei na celebração da meia-noite nos Capuchinhos. Senti aí uma das maiores impressões da minha vida. Nosso Senhor insistia fortemente para que me doasse a Ele” (NHV I, 26r).
“O que me atraía na minha vocação era ao mesmo tempo o desejo da união com Nosso Senhor e o zelo pela salvação das almas, bem como a necessidade de abundantes graças para me salvar” (NHV I, 29r).
No seu estudo sobre a experiência espiritual de Dehon, Alberto Bourgeois vê, nas frases acima, fórmulas tradicionais da época e a influência da evolução posterior de Dehon, e conclui:
“Qualquer que seja a releitura que, à luz da própria experiência, o Padre Dehon faça aí da sua experiência juvenil, não há dúvida que essa releitura tem como matéria e fundamento verdadeiras recordações. Ao menos, pode dizer-se que recordações, de tal modo claras e fortes, de uma experiência de união e de comunhão revelam uma fé, que vai muito além de uma simples adesão ao catecismo, ou seja, uma fé vivida como relação pessoal, como experiência de amor… É a partir da união com Nosso Senhor que se pode compreender e descrever a experiência religiosa do Padre Dehon, o seu olhar sobre Deus e sobre o mundo, e explicar os seus empenhamentos, o sentido da sua vida, a sua vocação e missão”(in Studia Dehoniana 23, p. 34).